Reforma tributária e o problema dos créditos acumulados

1 de setembro de 2023, Comment off

Reforma tributária e o problema dos créditos acumulados

Cenário de desconfiança dos contribuintes exige que alguns pontos sejam mais detalhados.

Após décadas de debates, o Brasil deu um passo importante rumo à simplificação do sistema tributário com a aprovaçao da PEC25/2019 na Câmara dos Deputados no último dia 7 de julho.

O texto aprovado propõe a criação de uma versão dual de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), sendo o IVA federal denominado Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em substituição ao PIS e à Cofins, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que congregará o ICMS e o ISS e será de competência compartilhada de estados e municípios.

Com as mudanças, a previsão é a de que o ICMS seja gradualmente reduzido, para ceder espaço ao IBS, entre 2029 e 2032, sendo completamente extinto em 2033.

Embora o texto seja um grande avanço, alguns pontos deveriam ser reavaliados pelo Senado antes de sua aprovação final. Um desses pontos é o tratamento conferido aos saldos credores, tanto dos tributos atualmente existentes quanto do IBS e da CBS, que demandam ajustes que deem maior efetividade à necessidade de monetização desses valores, sobretudo considerando a pouco efetiva experiência de ressarcimento de créditos de ICMS vivenciada nas últimas décadas, em especial nos casos de exportação.

Nesse contexto, considerando a extinção do ICMS a partir de 2033, a PEC sinaliza que os saldos credores do imposto existentes ao final de 2032 poderão ser aproveitados pelos contribuintes, nos termos de lei complementar, desde que admitidos pela legislação em vigor (i.e., sejam créditos compensáveis) e tenham sido homologados pelos respectivos entes federativos. Para tanto, o pedido de homologação deverá ser analisado no prazo estabelecido na lei complementar, sendo que, na ausência de resposta no prazo, os saldos credores serão considerados homologados.

A diretriz é positiva, ainda que a PEC não aponte o prazo para essa homologação, pois, se por um lado permite aos estados verificar a higidez dos créditos antes de homologá-los, por outro os força a se manifestar em certo limite temporal, findo o qual a homologação estaria tacitamente reconhecida. Essa medida tende a agilizar o processo de homologação, que atualmente representa um gargalo no processo de monetização desses valores.

A agilização na homologação dos créditos, contudo, não é a única medida esperada, pois é apenas uma etapa preparatória para que os saldos credores sejam efetivamente ressarcidos.

Nesse ponto, o texto aprovado sugere medidas pouco alvissareiras, ao prever que os créditos acumulados poderão ser compensados com o IBS ao longo de 20 anos e definir que, a partir de 2033, os saldos homologados sejam atualizados pelo IPCA-E ou por outro índice que venha a substituí-lo. Essa previsão, embora possa aparentar uma boa notícia aos contribuintes, já que hoje não há qualquer previsão de prazo ou de atualização desses saldos, falha ao violar (1) a isonomia, pois determina a correção dos créditos por índice bastante inferior ao aplicado na atualização dos débitos (Selic), o que coloca fisco e contribuintes em claro desequilíbrio; e (2) a razoabilidade, ao eleger prazo de compensação longo e absolutamente incompatível com o índice de atualização, pois basta que o IPCA-E seja, em média, superior a 5% ao ano para que o crédito nunca possa ser completamente utilizado (a variação do IPCA-E nos últimos vinte anos confirma essa suposição).

O texto ainda aponta que caberá à lei complementar regular a forma com que os titulares dos créditos poderão transferi-los a terceiros, bem como a forma pela qual eles poderão ser ressarcidos ao contribuinte pelo Conselho Federativo do IBS, caso não seja possível compensar o valor da parcela com débitos do novo imposto. Chama a atenção, nesse ponto, a falta de imposição de determinações mais efetivas para que os saldos credores sejam monetizados, considerando as experiências negativas com o próprio ICMS nas exportações.

Isso porque, no regime atual, a transferência a terceiros de créditos vinculados a exportações é prevista na Lei Kandir (lei complementar do ICMS), desde que haja a emissão de documento que reconheça o crédito pela autoridade competente. Com base nessa exigência, em muitos estados o procedimento depende de autorização discricionária de autoridades fazendárias, o que na prática dificulta a monetização célere desses créditos – ou mesmo a inviabiliza –, não obstante a garantia constitucional aos exportadores. Logo, relegar à lei complementar o tratamento do tema poderá acarretar a escolha por procedimentos e requisitos que causem embaraços à transferência desses créditos, como ocorre atualmente, o que não é recomendado.

Com relação a potenciais saldos credores dos novos tributos a serem instituídos pela PEC (IBS e CBS), o texto traz previsões expressas quanto à garantia de manutenção de créditos vinculados a exportações, bem como a previsão de que lei complementar trate da forma e do prazo de ressarcimento dos saldos credores em geral (inclusive os vinculados a exportações).

Com relação às exportações, a redação é ainda mais tímida que a do atual art. 155, § 2º, inciso X, alínea “a”, que além da “manutenção” também assegura o “aproveitamento” dos créditos de ICMS vinculados a tais operações, o que transparece um retrocesso do IBS e da CBS nesse particular. O comparativo entre os textos deixa clara a questão:

ICMS: tratamento de créditos vinculados a exportações atualmente IBS e CBS: tratamento dos créditos vinculados a exportações
Art. 155. (…)

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

(…)

X – não incidirá:

a) sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”.

“Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1º O imposto previsto no caput atenderá ao seguinte: (…)

III – não incidirá sobre as exportações, assegurada ao exportador a manutenção dos créditos relativos às operações nas quais seja adquirente de bem, material ou imaterial, ou serviço, observado o disposto no § 5º, III; (…)

§ 5º Lei complementar disporá sobre: (…)

III – a forma e o prazo para ressarcimento de créditos acumulados pelo contribuinte”.

Logo se vê que, da forma como redigido o inciso III do § 1º do art. 156-A, na redação proposta pela PEC, a Constituição teria uma garantia ainda mais branda aos exportadores, ao deixar de garantir o “aproveitamento” dos saldos credores do IBS e da CBS, diferentemente do que é previsto atualmente com o ICMS. Nesse contexto, se com o texto potencialmente mais garantidor (atual) a efetividade dos direitos dos exportadores é baixa, há uma grande preocupação com o que poderá ocorrer com os saldos credores de IBS e de CBS, que, ao menos em tese, estariam cobertos por um texto constitucional menos garantidor.

Nem mesmo a remissão ao § 5º do inciso III significa qualquer aceno com maior efetividade à monetização dos créditos, pois, nesse ponto, a PEC remete o tratamento dos saldos vinculados a exportações ao regime geral de ressarcimento de quaisquer créditos acumulados, o que também reforça a redução da garantia aos exportadores.

É bem verdade que a previsão geral de “ressarcimento” na PEC, potencialmente a todos os saldos credores, significa um avanço, pois essa possibilidade não é prevista na Constituição para os tributos atuais. A utilização do termo “disporá” no inciso III do § 5º (transcrito acima) também é positivo, pois impõe ao legislador complementar o dever de regular o tema. Contudo, ao atribuir à lei complementar a competência para regular a forma e o prazo para o ressarcimento, o direito do contribuinte fica suscetível a potenciais regulações restritivas, burocráticas e morosas, quando poderia estar mais bem definido no próprio texto constitucional.

O histórico do ICMS confirma que delegações à lei complementar não funcionaram no passado. Nesse contexto, vale lembrar que o art. 25 da Lei Kandir prevê expressamente que os saldos credores acumulados de ICMS em função de exportações poderão ser (i) imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no estado e (ii) em havendo saldo remanescente, transferidos a outros contribuintes do mesmo estado, mediante a emissão de documento que reconheça o crédito pela autoridade competente.

Embora o Judiciário, reiteradamente, decida que esse dispositivo é autoaplicável, o fato de o texto mencionar a necessidade de um procedimento burocrático bloqueia a sua efetividade (e da própria Constituição), tanto pela morosidade dos procedimentos impostos pelos estados quanto pela já citada discricionariedade do fisco para autorizar a transferência dos créditos.

Com relação aos demais saldos credores a situação é pior, pois, ainda tomando como parâmetro a sistemática do ICMS, a Lei Kandir atribui aos estados a competência para regular a matéria e muitos não o fazem da maneira mais eficiente. Nesse contexto, se a lei complementar do ICMS é incapaz de regular eficazmente uma solução para os saldos credores, o que garante que a lei complementar do IBS e da CBS o fará?

Em vista disso, a PEC 45/2019 deveria prever os prazos de ressarcimento e o pagamento de juros caso as autoridades não restituam os valores no prazo sem uma justificativa, sobretudo no caso de exportações. A título de exemplo, na União Europeia a Diretiva 2008/09/CE define as modalidades de reembolso do IVA a sujeitos passivos não estabelecidos no Estado-Membro do reembolso, mas estabelecidos em outro Estado-Membro. Essa diretiva aponta prazos para a efetivação dos reembolsos (quatro meses, em situações regulares, não podendo exceder oito meses em alguns casos) e impõe o pagamento de juros caso o Estado-membro não observe tais prazos (art. 26º). A OCDE também recomenda que os créditos de IVA sejam recuperados pelos exportadores, bem como que essa recuperação não seja burocrática ou de alguma forma dificultada pelos países[1].

Esse tipo de recomendação também foi apresentado pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF)[2], que sugeriu que o ressarcimento de créditos acumulados ocorresse em até 60 dias contados da data do pedido feito pelo contribuinte. Na hipótese de haver indícios de irregularidades na constituição dos créditos, esse prazo poderia ser estendido por mais 120 dias, com a aplicação de juros Selic sobre o valor a ser ressarcido. Passado o prazo de 180 dias sem conclusão do processo de investigação, o valor poderia ser transferido a terceiros, independentemente de autorização do fisco.

Tais medidas já poderiam estar presentes no texto da PEC 45-A/2019, de modo a dar maior segurança aos contribuintes, assim como já previsto com relação ao ressarcimento do IBS e da CBS que não possam ser compensados com o PIS/Cofins no período de transição dos regimes atual e futuro[3]. Se há previsão para ressarcimento, no próprio texto da PEC, para os saldos acumulados dos novos tributos na transição para o novo modelo, por que não fazer o mesmo com relação aos potenciais acúmulos apurados na plena vigência dos novos tributos?

Essa medida complementaria a previsão do art. 156-A, § 4º, da PEC, que aponta que o Conselho Federativo do IBS reterá montante equivalente ao saldo acumulado de créditos do imposto não compensados pelos contribuintes ou não ressarcidos ao final de cada período de apuração e distribuirá somente o montante excedente ao ente federativo de destino das operações que não tenham gerado creditamento. Esse dispositivo teria a possibilidade de garantir os recursos necessários para o rápido ressarcimento aos contribuintes e é bastante positivo. Contudo, ainda assim ele não garante que esse ressarcimento será simples e eficaz, pois isso dependeria de lei complementar, que, como visto, não cumpre seu papel adequadamente com relação ao ICMS.

É certo que o ideal seria ter uma Constituição mais principiológica/programática, que não detalhasse tanto o sistema tributário, de modo a evitar a hiperconstitucionalização. No entanto, a prática brasileira é diversa das práticas de outros países e o cenário de desconfiança dos contribuintes, em vista da ineficácia do ressarcimento dos tributos atuais, exige que alguns pontos sejam mais detalhados, sob pena de se perenizar a pouca efetividade de alguns direitos.

Fonte: por Maurício Barros para Jota Tributos.

O Grupo GRAM está à disposição para maiores informações e detalhes sobre o tema.

[1] International VAT/GST Guidelines. Paris: OECD, 2017, pp. 16 e 24. In http://dx.doi.org/10.1787/9789264271401-en

[2] Reforma do Modelo Brasileiro de Tributação de Bens e Serviços. Versão 2.2. São Paulo: CCiF, 2019, p. 7.

[3] O artigo 124 do ADCT, acrescentado pela PEC 45-A/2019, prevê que o IBS será cobrado à alíquota estadual de 0,1% e a CBS à alíquota de 0,9% em 2026, sendo que esses montantes poderão ser deduzidos do PIS/Cofins devidos pelo contribuinte. Caso o contribuinte não possua débitos suficientes para efetuar a compensação, o valor recolhido poderá ser compensado com qualquer outro tributo federal ou ressarcido em até sessenta dias, mediante requerimento.